Texto de Ana Magnani*
Memória, ..., que coisa estranha, repentinamente você toca uma coisa há muito tempo deixada de lado e, puff, uma história que parecia perdida retorna para nos fazer sentir novamente.
Bom, foi esse o acontecimento de hoje.
Vou contar a história.
A muito não lembrava de como peguei gosto pelos tecidos e linhas e ainda não sei dizer se algum dia vi mãe costurando, essas são lembranças que ainda não consegui alcançar, mas recordei as histórias que a ouvi contar, em momentos de alegria, e outros tantos de revolta.
Começou a retornar hoje, quando ao abri uma caixa guardada a muito, muito tempo, no maleiro do guarda-roupa. Nela, entre outros cacarecos, estavam adormecidos dois vestidinhos que mãe fez para mim. Um azul e branco com rendinhas de algodão e outro azul clarinho, com preguinhas, rendas, bordados e sainha franzidinha. Dois primores de capricho.
Observando os vestidos lembrei de mãe contando de quanto costurou na sua juventude. Roupas para ela, vó e tia. Saias godes, saiotes engomados que deveriam ficar em pé, casaquinhos dupla face, blusas finas... Tudo com acabamento perfeito.
Muitas lembranças se misturam nesse momento, o sentimento de alegria, frustração e tristeza. A mágoa por nunca ter sido valorizada.
Sinto hoje que mãe buscava aprovação do pai e sentia nunca ter alcançado.
A filha mais velha, a responsável pela mãe e irmã quando o pai se ausentava.
Aquela que carregava a responsabilidade e o peso por cumpri-la.
Não tenho lembrança de mãe sentada a máquina de costura, mas lembro de uma máquina que existia fechada em casa, em um canto qualquer.
Corro os dedos pela costura dos pequenos vestidos para sentir, se em algum ponto da costura, existe uma nova porta para as lembranças escondidas.
Por que ela parou de costurar? Quando aconteceu isso?
Não lembro.
Tenho muitos sumidouros de memórias.
Mas lembro de mãe contar que logo que meu irmão nasceu, eu devia ter entre dois e três anos, ela teve um período de apagamento, perda de memória. E ficou um bom tempo sem reconhecer nem a nós.
Ela revelou que detestava morar na casa da vila.
Era costume das famílias ítalo-brasileiras, que saiam das colônias, formarem vilas nas cidades, para morarem juntas. Pai era a rapa do tacho, e como mais novo da família, carregava a responsabilidade de morar na vila e cuidar dos pais. Era o costume. Uma imposição social.
Mãe era uma mulher com pensamentos emancipados e não queria aquela vida.
Ela sonhava com mais. Mais do que o território de uma vila ítalo-brasileira podia oferecer a uma mulher.
Contou que existiam alguns costumes que ela não aceitava: pai ser tratado como criança pelas irmãs mais velhas, a cachaça que era oferecida a ele pela mãe a cada volta do trabalho, as invasões a sua casa, abrindo panelas, cheirando a comida, observando os armários, as intrusões, os palpites, as repreensões.
Ela não pertencia àquele mundo e isso lhe doía profundamente.
Ela foi obrigada a casar e aceitar aquela vida como dela e isso nunca realmente aconteceu.
O conflito interno aumentava a cada dia e mãe relatou que corria se esconder no banheiro cada vez que ouvia a chinela da nona arrastando na entrada da casa. Aquilo disparava uma dor tão forte que ela não conseguia parar de chorar.
Ela não tinha ninguém que a apoiasse. Ela não podia trabalhar apesar de ter exercido sua profissão de professora até se casar.
Ela tinha que assumir o papel de esposa, mãe e cuidadora do lar. E ela desejava mais.
A nona e as irmãs de meu pai riam dela, de seus sonhos, de seus desejos, faziam troça de tudo que ela era, de seu gosto pela leitura, zombavam de seu conhecimento. A diminuíam dia a dia para submetê-la.
Seus pais não a apoiavam e já haviam lhe dito que lidasse com a nova vida. Que ela tinha que se adaptar sozinha.
Meu pai, dominado pelas mulheres da sua família, não conseguia lidar com o que mãe passava. Ou talvez não tivesse força para se opor. Era aquela a vida que ele conhecia.
E assim a vida seguia, a mulher decidida, forte e autônoma, começava a minguar dentro de uma casa de uma vila do interior. Ela tinha a mim, e esses dois vestidinhos são prova de que ela tentava se manter sã através das arte-manuais, do cuidado comigo, mas isso não foi o suficiente.
Ela não revelou mais sobre o transcorrer de sua vida nesse período. Só uma receita de polenta ou uma tentativa de chamar para um lanche da tarde frustrada, nada mais.
Quando já era meninota mãe contou que a dor foi tanta por não encontrar saída que ela simplesmente esqueceu.
Apagou os rostos, os nomes, a história. Talvez, nesse momento, também o gosto pelas artes-manuais tenha se apagado, não sei.
Foi mais de ano esquecida, a pecha de louca, a mudança para o sítio.
Lá mãe começou a retornar aos poucos, já voltava a nos contar histórias e a tocar seu violão. A olhar para o céu balançando na rede esperando pelo pouso do astronauta na lua.
Ali, mãe teve possibilidade de voltar a respirar; seus sonhos em algum canto renascendo.
Mas a costura não encontrou mais o caminho de volta para as suas mãos.
Não mais.

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*Ana Magnani é doutoranda em Educação na FCLAR - Faculdade de Ciências e Letras da Unesp Araraquara. Em seu Ateliê desenvolve pesquisas sobre a temática da infância, da diversidade pesquisas sobre a temática das infâncias, diversidades com enfoque nas relações étnico-raciais e de gênero.

