Texto de Ana Magnani*
Cara educadora,
Como tem sido a sua vida? Tem sido boa, de qualidade, com tempo para estar sendo? Por aqui ando caminhando, seguindo meus sonhos e meus instintos, buscando respostas para perguntas ainda não feitas, sigo o compasso do tempo-brincante.
Coisa de criança. Coisa que aprendi com as crianças.
Um ritmo do tempo, esquecido pelos adultos, que proporciona encontros com os sorrisos, as perguntas e os abraços. A cadência de um tempo no qual cabe o olhar para a batida da asa, o voo da folha ao chão, o rastejar da lagarta em seu movimento bamboleante.
Olhar de criança. Olhar que estou aprendendo a ter com as crianças.
A fala assertiva, o olhar curioso, a postura despreocupada, a língua solta. Língua que não guarda as perguntas, as faz.
E que nos toma de assombro.
Coisas importantes para as crianças. Coisas que estou aprendendo a pensar com as crianças.
Querida Mestra, - quanto carinho contém esse chamamento – te escrevo porque fui tomada pela inquietude, dias desses, em que, entre risadas soltas e brincadeiras despreocupadas na roda de conversa, as crianças disseram que sentem ódio. Que sentem ódio todo dia.
Ódio do mundo, das coisas, de tudo.
Falas de crianças. Falas que tenho aprendido a escutar com as crianças.
E apesar de estar aprendendo a escutá-las, fui tomada pelo assombro. E minha primeira vontade foi de não acreditar, de pensar que estavam inventando, que era bobagem de crianças.
E senti uma profunda vergonha dos meus pensamentos frente as crianças. Pois percebi que eram
Coisas de adulto. Adulto que faz pouco da fala das crianças.
E elas, em sua delicadeza e inocência, continuaram a falar como se não tivessem dito algo muito, muito, muito importante. Como se eu não tivesse pensado algo muito, muito, muito feio.
Em uma roda filosófica com 40 crianças, todas disseram acerca do ódio, todas concordaram dizendo que o sentem.
Todas as crianças, naquela roda, sentem ódio todos os dias.
Falas fundamentais das crianças. Falas que não levamos a sério das crianças.
A roda seguiu seu movimento, circulando o mundo que as crianças compartilhavam, girando em alta velocidade ao ritmo da energia vital das crianças. E eu parada, assombrada, olhando a gira cumprir seu percurso, com os pensamentos dando voltas ao meu mundo, um mundo imaginado que constitui enquanto educadora, me perguntando: onde estava esse ódio, esse tempo todo, que não me dei conta dele?
Susto da adulta tomada pelas falas e verdades que as crianças jogam na roda.
Querida amiga, você já tinha se dado conta do ódio como parte do cotidiano de algumas crianças? Eu já tinha identificado a tristeza, a dor, a invisibilização e a invisibilidade, o silenciamento, entre tantas outras emoções e sentimentos. Mas o ódio? Eu não queria percebê-lo, também, como parte do universo infantil. E isso me dói.
Respiro profundamente.
Estou aqui sentada, com uma xícara de chá quente entre as mãos e releio o texto que agora te escrevo. Estou sendo educadora e compreendendo as crianças de modo tão liso, esquecendo as suas complexidades?
Esse ódio não se escondeu de mim – revisito alguns olhares, algumas posturas, algumas expressões em memória – ele estava lá. Eu não consegui perceber ou quis ver.
Nesse momento sofro com esse desvelamento, as crianças me mostravam a todo tempo e eu não quis ver. Mestra querida, isso me dói profundamente. Você já tinha se dado conta desse sentimento nas crianças, você as ajuda a organizar o ódio?
Organizar o ódio com as crianças. Ajudar as crianças a direcionarem corretamente esse ódio.
Venha cá, professora, sente mais perto. Olhe nos meus olhos e me diga quais práticas você tem usado para lidar com as emoções e os sentimentos das crianças?
Emoções, sentimentos. Pouco ou nada me falaram sobre isso na graduação. Desembesto a pensar. Sentimentos e emoções que habitam corpos que trazem marcas que dizem do mundo que não é o meu mundo e eu tenho cronograma a cumprir provas a serem feitas conteúdos a serem transmitidos... e a vida? Onde cabe a vida? Os sentimentos e as emoções? Onde cabe o humano e todo o seu enredamento?
Sinto-me atordoada com essa descoberta e disposta a repensar todas as minhas teorias. Sei que demandará um outro tempo, por isso mesmo iniciei a nossa conversa com o tempo-brincante.
Inicio a busca por repensar as teorias com olhar de criança. Coisa que aprendi com as crianças.
Brincando as crianças experenciam o mundo primeiro, conhecendo-o, apalpando-o, cheirando-o, o sentindo em toda a sua intensidade. Nesse tempo-brincante as crianças mergulham nos sentidos das coisas, buscando por seus sentidos mais profundos. Escavadores, nos diria Manoel de Barros. As crianças são nossos pequenos arqueólogos, tirando a poeira dos tempos, que escondem a razão primordial das coisas. E assim, as crianças sentem o mundo intensamente.
Já não se encontram entorpecidos pelas promessas e verdades. Elas duvidam, questionam, provocam.
Quero voltar a ser com elas.
Quero questionar as verdades e dizer sobre as dúvidas. Quero mais perguntas, do que respostas, e assim, quem sabe, redescobrir os sentidos que nos habitam desde o início de tudo.
Querida amiga, sigo agora silenciando as palavras e me colocando a senti-las, enquanto aguardo a tua resposta.
Com amor,
Ana Magnani
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*Ana Magnani é doutoranda em Educação na FCLAR - Faculdade de Ciências e Letras da Unesp Araraquara. Em seu Ateliê desenvolve pesquisas sobre a temática da infância, da diversidade pesquisas sobre a temática das infâncias, diversidades com enfoque nas relações étnico-raciais e de gênero.