Artes-manuais e seus encontros

Capítulo "Diversidade entre afetos"

Artes-manuais e seus encontros, de Karla Santori

Karla ... transforma experiências em afetos e pensamentos na voz de Clara, uma mulher a se construir e reconstruir em seus processos junto a diversas técnicas das manualidades e seus momentos de vida.

Quantos encontros os fios nos proporcionam? As alegrias, desconfortos e descobertas em um ateliê, numa roda ou em uma viagem. O quanto de pensares e sentires nos invade enquanto produzimos? Também quando trocamos, presenteamos e ensinamos nossos fazeres.

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O fazer manual se mostra rico em saberes e gestos que produzem sim uma obras, mas será que ele não produz além de um objeto? Produção de si mesma, produção de relações, produção de olhares, produção de encontros.

Karla compartilha em seu livro, em seu narrar junto a Clara experiências e aprendizagens em movimento de encontro.

Karla Santori, em 'Artes-manuais e seus encontros', transforma experiências em afetos e pensamentos na voz de Clara, uma mulher a se construir e reconstruir em seus processos junto a diversas técnicas das manualidades e seus momentos de vida. Karla compartilha em seu livro, em seu narrar junto a Clara experiências e aprendizagens em movimento de encontro.

A autora narra experiências com a lida com suas artes-manuais e poetiza. Num movimento de composição, em que tensiona seus limites e potências.

'Artes-manuais e seus encontros' é o primeiro volume da coleção 'Artes-manuais para a educação: aprendizagens e processos de singularização', organizado por Ana Lygia Vieira Schil da Veiga. E foi construído durante o fazer da primeira turma da pós-graduação em artes-manuais para educação.

Agora acompanhe um dos capítulos do livro:

Diversidade entre afetos

Clara, impulsionada pelas experiências vividas, resolveu chamar pais e mães da escola para viverem as artes-manuais.

A proposta era que todos pudessem aprender, ensinar ou apenas ter um tempo para si. Algumas pessoas prontamente se interessaram.


Clara estava animada, mas não sabia muito o que estava por vir.


No primeiro encontro conversaram um pouco sobre amenidades e resolveram começar pelo tricô. Tinham
pessoas que já sabiam fazer e algumas pessoas não sabiam nem pegar nas agulhas.


Aquelas que sabiam, ensinavam as que ainda tinham dificuldades e assim os minutos foram passando e, pouco a pouco, as pessoas foram relaxando, mas todas caladas.

Clara voltou para casa sem a menor certeza de que o grupo se manteria, mas não quis pensar nisso naquele momento, estava muito feliz por ter conseguido reunir aquelas pessoas.

A partir do segundo encontro, o clima já estava mais tranquilo, cada uma com o seu trabalho, e começaram
a falar sobre a vida, suas marcas, seus entraves, suas necessidades, suas preocupações. Os relacionamentos
começaram a se desenvolver junto com a confiança no outro.

Clara sentia-se feliz por ter conseguido reunir aquelas pessoas e começou a reparar em seus comportamentos
e falas. Sentiu que aqueles momentos seriam preciosos para o grupo, sem saber se seriam bons ou ruins, mas o
exercício seria, no mínimo, muito interessante.

Juliana

Juliana, chegou no grupo resolvida a sair do emprego estável, para se dedicar à culinária. Já tinha uma memória
de como fazer o tricô e resolveu retomar um trabalho que havia começado há muitos anos. Enquanto a sua
dispensa da empresa não acontecia, ela fazia a caminho do trabalho, no trem, o seu tricô e, segundo ela, era uma maneira de carregar suas energias para passar o dia todo, pois aquilo se transformou em angústia.

É uma pessoa muito positiva e prática e não reclama da vida e nem se deixa abalar por qualquer acontecimento. Sempre que algum imprevisto acontece ela diz: “É o que temos para o momento e não vou ficar me lamentando por isso. Faço o melhor que posso...”. Terminou seu cachecol e quis logo fazer algo diferente.

Como não sabia fazer peças circulares no crochê, quis aprender e orgulha-se muito do que está produzindo. Tornou-se uma pessoa muito querida da turma. Vive um dia por vez, sem tentar se preocupar com o dia seguinte.

Para Clara, olhar para Juliana e ver aquele sorriso sempre em seu rosto, já é o bastante e espera que essa convivência perdure por muito tempo.

A cada encontro ela agradece pelo momento, mesmo com todos os problemas que a atormentam e diz: “Gente
a chave do negócio é viver um dia de cada vez. Por que que eu vou viver pensando no que vai acontecer se eu
nem sei o que é?” .

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De repente, Juliana não pôde mais participar do grupo por questões de horário, mas continua mandando
fotos para todos do que está produzindo e sempre com uma mensagem de coragem e força.

Coragem, o que é isso? É uma forma de enxergar o mundo? É um sentimento apenas? É estar preparado para o que der e vier? É um
impulso ou um pulso? É manter aparências diante de uma situação? É conviver com toda a incerteza do mundo? É sentir a fraqueza do ser
humano e mesmo assim colocar-se em cima do salto? É simplesmente viver como se consegue? É lutar por ideais? É sentir raiva quando algo lhe desagrada? É dizer aquilo que se quer, quando e onde se quer e para quem se quer? O que é ter coragem? O que é ser coragem? O que é ter cor e agir?

Mariana

Mariana, mãe de dois filhos, chegou no grupo estressada, falando que convive com insônia constantemente pensando no trabalho. Por isso, resolveu participar do grupo, para ocupar sua mente com coisas que não estariam relacionadas ao seu trabalho.

Era uma das que não sabiam nem como segurar as agulhas. No início, teve bastante dificuldade em lidar
com essa dificuldade. Ficou dois encontros sem aparecer e o grupo achou que ela não viria mais. Subitamente
ela apareceu e começou a reclamar de uma forte dor de cabeça e tinha esquecido seu remédio em casa. Nenhuma das meninas tinham um remédio na bolsa para dar para Mariana e foi aí que Clara colocou-a sentada no lugar mais confortável que tinha na sala. Deixou a garrafa de chá do seu lado, junto com um copo de água e uma xícara. Disse para ela descansar e colocou ao seu lado uma cesta com restos de lã. Mariana ficou ali, parada, não teceu nada, apenas pegou as lãs do cesto e começou a fazer novelos. Num determinado momento, baixou seus olhos e lágrimas escorriam em seu rosto a cada volta que a lã dava no novelo. Ninguém falou nada e continuaram fazendo seus trabalhos.

Quando se despediram, Clara reparou que ela foi a primeira que saiu da sala. Ficou preocupada e tentou falar com ela durante toda semana, mas não teve sucesso. Restava apenas aguardar o próximo encontro.

Na próxima semana o tempo estava chuvoso e a temperatura bastante amena. Clara esperava a chegada
de Mariana e nada. Abriram os trabalhos e de repente Mariana chegou, toda atrapalhada. Clara sentou-se ao
seu lado e não disse nada. Mariana então pegou em sua mão e colocou um novelo de lã que ela havia feito com
todos os restos que tinha em casa, emendando pedaço a pedaço dizendo: “obrigada, depois de nosso último
encontro, comecei a dormir melhor.”

Clara deu um sorriso como se agradecendo por ela estar ali e Mariana começou a contar como passou a
semana. Fez novelos em todos os momentos livres que tinha no dia. Pegou todas as lãs e linhas, restos e os fez
loucamente. Durante esse período, ela refletiu e chegou à conclusão de que não há conclusão. Que tem certas coisas na vida que acontecem, e por mais que queremos resolvê-las, não podemos. Se não conseguimos controlar a nossa vida, quem dera a vida dos outros! Pegou as agulhas durante a sua fala e começou a tecer. A única coisa que ela dizia com certeza é que a frequência da insônia diminuiu e que não sabe como conseguiu colocar aqueles pontos na agulha sozinha, rindo muito do que ela mesma tinha dito.

Naquela noite, Clara foi para casa com a imagem de Mariana sorrindo, alegre, como jamais a tinha visto.
Não tinha entendido como tudo aquilo tinha acontecido com ela, mas será que ela tinha que entender? Será
que fazer o novelo foi um modo dela pensar em si mesmo? Será que as artes-manuais, sejam elas quais
forem, teriam essa força? A partir de então, em todos os demais encontros, Mariana começou a tecer uma
blusa que, segundo ela, quer que seja bem comprida e bem colorida, com muitas emendas, para ela registrar e
aproveitar todos os momentos dessa experiência.

As artes-manuais são uma terapia, uma inspiração ou um modo de ser? É um simples movimento repetitivo ou um conjunto de experiências? Um desafio ou um modo de desfazer o seu fio? Uma conquista ou construção? Por que será que as pessoas têm a necessidade de tecer ou desmanchar o que fazem? Será que o movimento do fio, seja ele qual for, desenha algo que está ligado com nosso momento e tempo?...

Clara espera conviver com Mariana por um bom tempo e aprender com ela muitas coisas.

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Outros encontros

O capítulo continua com os encontros de Clara com: Luidgi, "rapaz de 15 anos , cursando ensino médio, cheio de dúvidas e desejos"; Lúcia, "mulher de personalidade forte, defensora da causa negra, mãe de um filho e professora de filosofia."; e Marta, que convida "Clara para participar de uma oda de bordado em família."

Comentem para sabermos como estão sentindo a história e se querem ler as outras histórias, e de acordo com vocês publicamos em breve as histórias de Luidgi, Lúcia e Marta.

Artes-manuais para educação

Para vivenciar encontros que vão fortalecer suas vivências e saberes com as artes-manuais. Participe com a gente! As inscrições para a terceira turma da pós-graduação em artes manuais estão abertas. Aproveite!