Mãos que atuam

texto de Nina Veiga

[...] levando minhas mãos a se acariciarem uma à outra, percebo que elas, sem que meu cógito as comande, se revezam de tal modo que a mão que sente é logo a mão sentida e a mão sentida é logo a mão que sente, e assim por diante. Esse desvio diferencial vivido pelo próprio corpo sensível entre sentir e ser sentido instala uma reflexividade, um sentido anterior à sua expressa tematização pela consciência intelectual. Isso reforça em Merleau-Ponty a ideia de percepção como ‘o ato que nos faz conhecer existências’, o ato pelo qual tenho acesso ao que ele chama de ‘estrutura’, isto é, a ‘região’ que fica ‘abaixo’ de ‘palavras’ e de ‘ações, região em que ‘elas se preparam, região que é o próprio ‘comportamento’, isso que ‘exprime uma certa maneira de existir antes de significar uma certa maneira de pensar’ (ORLANDI, 2004, p.06).

Em fileiras incertas, os teares acomodam-se entre meadeiras , cestas e cadeiras. Novelos, meadas, pentes, gaiolas de fios, caixas de tensão. Escuta-se uma voz. Parece vir de um abismo. Silencioso abismo ousa falar? Balbucia. Uma navete cruza o ar. O caderno no colo. Anotar os duites de cada cor . Risco. Rasura. Escuta-se uma voz distante. Seria um grito? Grito de um corpo distante. Voz de um abismo sem-fundo que ecoa o grito de um corpo oco. Seria o abismo um útero? Marcas. Letras. Frases. O desenho do ponto sinaliza a técnica. Entrelaçamentos. O barbante pode ser o fio da coragem. Embrião. Germe. Não esquecer... o grão.... Geração de vozes, balbucios. Ruídos em devires múltiplos. Escuta-se uma escrita. Estou à beira de perder o fio. O abismo-útero escreve. Escreve em linhas, fios de sangue e húmus. Fecundo abismo. Um abismo diz. Se diz. Um dizer fecundo em útero de sangue faz-se. Dizer fazendo, fazer dizendo. Dar dois nós no início da trama. Um útero ensanguenta o que faz e diz. Indistinto atuar. Oco aberto ao devir. Sangue e lã. Mistura de fluídos, penetrações, murmúrios. Sensações incertas, mãos trêmulas, escritas ilisíveis. Sussurros. Fecundações. Gritos. Procuro despir-me. Voz de um oco que ecoa o grito de um corpo no abismo. Mãos trêmulas tateiam o corpo. Mãos trêmulas tateiam a lã. Acariciam a pele. Cala. O sangue escorre do silencioso abismo. Cicia. O sangue diz, a lã escorre. Corpo trêmulo no abismo. Um sem-fundo mistura-se ao fazer das mãos que invadem o útero. Mechas. Interpenetrações de fios em espaços-tempos muitos. Cio. Pele estendida no quadro do tear. Fios tensionados. Gritos abafados. Vozes de abismo. Zumbidos. Atordoamento. Lembranças. Vozes. Ecos no oco do corpo. Uma escrita tensiona um corpo. Uma escrita ecoa um abismo. Uma escrita expõe uma víscera oca. Ressoa uma víscera em constante devir. Um tecido se escreve no movimento de um corpo tecelado.

 

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