
práticas para um simples viver
artes da casa
uma fala inaugural
palestra que ministrei no projeto GOTAS ANTROPOSÓFICAS, promovido pelo EcoSocial.
- uma epígrafe
"A casa abriga um dia sonhado...
A casa abriga um sonhador..."BACHELARD, Gaston. A casa. Do porão ao sótão. O sentido da cabana.
In:_. A poética do espaço. São Paulo: Martins Fontes, 2000.
A complexidade
É importante perceber que para recortar um assunto é preciso reduzi-lo.No entanto, não se pode perder de vista a dimensão de sua complexidade"Os processos são muito complexos e
diversificados para se querer fazer
julgamentos generalizantes".
George Steiner
Uma questão complexa.
Vamos olhar para apenas um dos pontos dessa complexidade, sem perder de vista que o que estamos vendo é apenas um fragmento e que está sempre recebendo a influência daquilo que não enxergamos.
Em sua complexidade, o conceito de casa pode ser observado por uma multiplicidade de ângulos: a casa e a educação; a casa e a família,; casa e trabalho; casa e gênero; casa e a divisão sexual do trabalho; casa e higiene; casa e limpeza; casa e esgotamento; casa como lugar de procrastinação; casa e mercado imobiliário; casa e políticas públicas habitacionais; casa e privacidade; casa e consumo; casa e decoração; casa e sua vizinhança; casa como patrimônio; casa e pessoas em situação de rua; casa e conforto; casa e abrigo; casa e ascese; casa e processos de subjetivação; casa e produção de singularidade; a casa grega e a invenção do patriarcado; a casa não ocidental; a casa e o matriarcado; a casa e a alimentação; a casa e a saúde; a casa e o vestuário; a construção da casa; a casa e a bioconstrução; a casa e a tecnologia; a casa e o lar; a casa como lugar; a casa como espaço; a casa e o tempo; a casa e a ancestralidade; a casa e a matrícia; a casa e a sexualidade; a casa e o meioambiente; a casa como metáfora; a casa e o feminismo; a casa e a economia; a casa e o corpo; casa e habitação; casa como o poder fora do Estado; a casa e o cotidiano; a casa e... a casa e... a casa e...
Vamos olhar para um pequeno ponto na complexidade do conceito de casa.
A casa como qualidade espiritual.
acreditar no mundo
"Acreditar no mundo é o que mais nos falta. Nós perdemos completamente o mundo, nos desapossaram dele. Acreditar no mundo significa principalmente suscitar acontecimentos, mesmo pequenos, que escapem do controle, ou engendar novos espaços-tempos, mesmo de superfície ou volumes reduzidos".
DELEUZE, Gilles. Controle e Devir. In: Conversações. São Paulo: Ed. 34, 1992.
nem todo mundo tem casa
nem todo mundo está seguro em casa
as casas nem sempre são como imaginamos
a casa quilombola
a casa na favela
a casa maloca
a casa cortiço
a casa dos refugiados
A casa do circo
a casa dos sem terra
a casa cigana
a casa no asilo
- um prólogo
o encontro de uma voz libertária
"[...] impossível compreender um ser humano em toda sua abrangência, com base no conceito de espécie. Os mais arraigados preconceitos são os referentes ao sexo. O homem vê na mulher e a mulher no homem, quase sempre, demais do caráter genérico do sexo e muito pouco da individualidade. Na vida prática, isso prejudica menos os homens que as mulheres. A posição social da mulher é geralmente tão indigna, porque depende demais de preconceitos referente às pretensas tarefas e necessidades naturais da mulher e muito pouco do caráter individual. As atividades do homem baseiam‐se em suas faculdades e inclinações individuais, as da mulher devem ser exclusivamente julgadas pelo fato de ela ser mulher. A mulher deve ser, segundo essa visão, escrava do caráter genérico, ou do feminino em geral. Enquanto os homens continuarem debatendo se a mulher serve ou não, em função de sua disposição natural, para esta ou aquela profissão, o problema da igualdade da mulher não vai progredir. O que a mulher pode querer de acordo com a sua disposição natural, tem de ser decidido por ela. Se fosse verdade que as mulheres só servem para as profissões atualmente exercidas por elas, então dificilmente conseguiriam exercer outras por força própria. Porém elas devem poder decidir livremente o que lhes convém, segundo a sua natureza. Quem teme o abalo da ordem social em virtude de se atribuir à mulher direitos individuais, não entende que uma ordem social na qual a metade leva uma vida indigna precisa, sim. e muito, de melhoramentos."
STEINER, Rudolf. A Filosofia da Liberdade: fundamentos para uma filosofia moderna. São Paulo, Antroposófica, 2008, p. 163.
outro prólogo
a perspectiva de um olhar
Da mesma forma, seria importante termos presente que esse feminino, de que vamos falar, não é um feminino-molar, ligado necessariamente à forma mulher, mesmo em se tratando de mulheres em fazeres culturalmente femininos. E, sim, um feminino-molecular, enquanto fluxo e forças e enquanto minoria. Minoria como devir todo mundo. Feminino como um devir, haja vista que “todo devir é minoritário” (DELEUZE; GUATTARI, 1980/2008a, p. 87). Feminino como um devir-mulher “de nós todos, quer sejamos masculinos ou femininos” (Idem, 1980/2008b, p. 174).
Molar no sentido impresso por Deleuze e Guattari (1980/2008), onde a organização dos elementos nos estratos se dá de forma delimitada e representativa. Enquanto a organização molecular inclui os fluxos, intensidades e devires.
Minoria como menor no sentido impresso por Deleuze (1975/2003), em Kafka: para uma literatura menor, onde a dinâmica dos acontecimentos se abre às singularidades, dando fuga aos modelos, às totalizações.
DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. Mil Platôs: capitalismo e esquizofrenia. Vol. 1. São Paulo: Ed. 34, 1980/2008.______. Mil Platôs: capitalismo e esquizofrenia. Vol. 2. São Paulo: Ed. 34, 1980/2008a.
______. Mil Platôs: capitalismo e esquizofrenia. Vol. 3 São Paulo: Ed. 34, 1980/2008b.
- vislumbrando pressupostosÉ importante declarar onde o pensamento se ancora na constituição de um conceito
O que é falar a partir de uma antroposofia da imanência?
1 - tomar o autor em seu plano de imanência;
2 - descolar a antroposofia de um frequente modo de sua apropriação como religião;
3 - combater o pensamento dogmático.
- uma pista
"Antigamente, cada trinco de porta, cada chave era expressão de algo espiritual."
STEINER, Rudolf. Seres elementares e seres espirituais.
GA 98. São Paulo: Antroposófica, 1991, p. 36.
- outra pista
o encontro de uma referência
"Existe um famoso exemplo de Rudolf Steiner: Uma dona de casa reclamou que por causa do trabalho de casa não lhe sobrava tempo para estudar as suas palestras, e Steiner respondeu: 'Se a senhora limpar a sua casa, a senhora liberta os seres elementares. Nenhum ser elementar é libertado quando se lê um ciclo de palestras'. Isso significa que nós agimos no mundo material ao limparmos a casa. Os seres elementares sempre ficam presos onde se acumula sujeira, assim o pano úmido significa, para eles, a libertação.
Isso é ocultismo prático. A cuidadora de casa não dará conta do trabalho sem ele. Mas, se a cuidadora de casa conseguir se comunicar com o mundo dos seres elementares, ela terá uma nova visão do seu trabalho".
(Schmidt-Brabant, 1996, p. 14 - tradução livre).SCHMIDT-BRABANT, Manfred. The spiritual tasks of the homemaker. Temple Lodge Publishing, 1996.
" O mundo e a matéria têm uma forte relação com o "querer" do ser humano. O mundo das coisas se relaciona com o querer, são três as matérias que dominam em uma casa: os alimentos, os produtos têxteis e as matérias firmas, como madeira, vidro, pedra. Esses elementos têm um significado especial para o ser humano. As matérias firmes têm relação com a compreensão, os produtos têxteis com o lado rítmico e dos sentimentos." (Schmidt-Brabant, 1996, p. 18 - tradução livre).
- a casa no contemporâneo
Em casa: uma odisseia do espaço doméstico
Mona Chollet
Mona Chollet , nascida em Genebra em 1973 , é jornalista e ensaísta suíça . Desde 2016, é editora-chefe do Le Monde Diplomatique.
A autora entende que o espaço privado é sempre desvalorizado em relação ao espaço público. A casa deve ser reivindicada como um local de criação e até de militância. É precisamente do feminismo que a importância da intimidade do lar como um espaço em que os valores impostos pelo patriarcado são transmitidos, as ideologias são consolidadas e certas práticas sociais são melhor explicadas. Mas considerada uma condição necessária e indispensável para poder influenciar o espaço público, a casa também é o espaço em que é possível subverter valores herdados, questionar e produzir modificações que ultrapassam seus limites. Portanto, a casa não é excluída da política, mas, pelo contrário, é uma parte inseparável desse campo.
"Nossos sonhos de casas
sustentam,
contra todas as probabilidades,
uma confiança no futuro;
eles sempre afirmam a possibilidade
de uma refundação do mundo"excertos
"Menos obviamente, mas também crucialmente, o que é necessário para poder ancorar no mundo não é apenas espaço, mas também tempo. Para se deixar deslizar entre as quatro paredes, é necessário um tempo generoso, pare de contar as horas e os minutos. No entanto, passamos pelo rigor de uma disciplina por hora impiedosa. Além disso, integramos a ideia de que nosso tempo era uma mercadoria inerte e uniforme, que se tratava de preencher, aprimorar e gerar lucro, o que nos mantém em alerta permanente, culpa em emboscada". (capítulo 4)
[...] é impossível não ver em uma habitação o lugar de um feroz equilíbrio de forças: aquilo que é gerado pela simples necessidade de mantê-lo. Considerando a limpeza como uma tarefa indigna e ingrata, nós a delegamos às categorias dominadas, sem nos preocuparmos muito com as condições de existência às quais essa especialização as condena. (capítulo 5)
Mona Chollet, Chez soi: une odyssée de l'espace domestique, Paris, La Découverte, 2017, 359 p. (ISBN 978-2-7071-9219-6) - vozes aliadas dos territórios investigativoscitações de autores, marcações de palestras, provocações para fazer o pensamento pensar
um lugar
Dimensões da vida não produtiva.
um alerta
os autores são aliados não autoridades às quais se submeter.
uma origem
o conceito de economia (gregos):
oikos - casanomos - costume lei
uma voz
"A casa é do tamanho do mundo; ou melhor, é o mundo".
Jorge Luis Borges
outra voz
"É preciso procurar na casa múltipla, os centros de simplicidade".
Bachelard
outra origem
a modernidade
a medicina define a 'natureza' da mulher
surge a mentalidade 'natureza - identidade'
surge a família nuclear e a mulher é decalcada 'naturalmente' à casa.uma certeza
"A casa, na vida [humana], afasta contingências, multiplica seus conselhos de continuidade. Sem ela, o [humano] seria um ser disperso. A casa mantém o [ser humano] através das tempestades do céu e das tempestades da vida. Ela é corpo e alma. É o primeiro mundo do ser. Antes de ser atirado ao mundo, o [ser humano] é colocado no berço da casa."
BACHELARD, Gaston. A casa. Do porão ao sótão. O sentido da cabana.
In:_. A poética do espaço. São Paulo: Martins Fontes, 2000.
outra certeza
Viver é certamente tratar com o mundo
Esse é o sentido da mais famosa máxima de Ortega y Gasset: "O homem é o homem e a sua circunstância". Para ele, não é possível considerar o ser humano como sujeito ativo sem levar em conta simultaneamente tudo o que o circunda, a começar pelo próprio corpo e chegando até o contexto histórico em que se insere. A Educação vira um instrumento para que cada um possa conscientizar-se de sua circunstância, relacionar-se com ela e superá-la. "Se não a salvo, não me salvo eu", conclui o filósofo espanhol.
uma constatação espantosa
Agora, [...] estamos em casa. Mas o em-casa não preexiste: foi preciso traçar um círculo em torno do centro frágil e incerto, organizar um espaço limitado. Muitos componentes bem diversos intervém, referências e marcas de toda espécie. [...] Eis que as forças do caos são mantidas no exterior tanto quanto possível, e o espaço interior protege as forças germinativas de uma tarefa a ser cumprida, de uma obra a ser feita.
DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. Mil Platôs: capitalismo e esquizofrenia. Vol. 4. São Paulo: Ed. 34, 1980/2008duma imagem
Uma criança cantarola para arregimentar em si as forças do trabalho escolar a ser feito. Uma dona de casa cantarola, ou liga o rádio, ao mesmo tempo que erige as forças anti-caos de seus afazeres.
DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. Mil Platôs: capitalismo e esquizofrenia. Vol. 4. São Paulo: Ed. 34, 1980/2008d uma questão recorrente: casa e mulher
uma contradição ou questão de valor?
As mulheres e a construção do novo mundo.
Ao longo do tempo, passamos por processos que separaram os homens da vida. Por privilégio, interessantemente, os homens ganharam poder, mas esse poder se deu através de separação. Separação da natureza, separação deles mesmos, separação da família e da comunidade. Porque as mulheres foram deixadas para cuidar do sustento, da vida, das crianças, de buscar água, buscar combustível, cozinhar... As mulheres continuaram a ser relacionadas com a vida. E isso não era chamado de trabalho, "as mulheres não trabalham", foi dito. Mas esse era o verdadeiro trabalho de manter, reproduzir a vida. E com a tarefa de realizar essas centenas de trabalhos, as mulheres se tornaram experts multifuncionais. Elas se tornaram experts em água, sementes, comida, solo, dar à luz, bebês, diarreia... As mulheres, através da vida, desenvolveram expertise. E é por isso que digo: no que se refere à vida, as mulheres são experts. Não porque nossos genes e biologia nos fazem assim. Mas porque nos deixarem para cuidar do sustento da vida nos fez experts de uma ponte para o futuro, onde teremos que voltar à vida, às considerações de como manter a vida neste planeta. Essa sutileza é o que as mulheres foram capazes de nutrir e continuar. E agora é hora de as mulheres redistribuírem isso à sociedade. É por isso que em Navdanya temos uma Universidade das Avós. Porque cremos que nossas avós têm a melhor expertise para o futuro. Mas como saber o que é necessário para viver neste planeta? Não para lucrar, não para ganhar mais dinheiro, mas para viver.
Ecofeminismo descreve movimentos e filosofias que ligam o feminismo com a ecologia. O termo é acreditado ter sido inventado pela escritora francesa Françoise d'Eaubonne em seu livro Le feminisme ou la Mort (1974).
¿Existe una relación entre la opresión patriarcal y la destrucción de la naturaleza en nombre del progreso y el beneficio? ¿Cómo debería contabilizarse la violencia inherente a este proceso? ¿Existe alguna relación entre el movimiento de mujeres y otros movimientos sociales? Esta nueva edición, revisada y ampliada, es hoy tan vigente y necesaria como cuando se publicó por primera vez. Este libro sitúa la responsabilidad y las respuestas que las mujeres pueden dar a los mayores problemas actuales del planeta, tanto medio ambientales como económicos. La destrucción ecológica y las catástrofes industriales de hoy en día constituyen uno de los trazos constitutivos de nuestra vida diaria, el mantenimiento de la cual es habitualmente responsabilidad de las mujeres. Junto a esta situación, las nuevas guerras que el mundo experimenta, los conflictos étnicos y el mal funcionamiento de las economías se presentan para el ecofeminismo como urgentes cuestiones a resolver, tanto en las sociedades industrializadas como en las del Tercer Mundo. Maria Mies, profesora de sociología retirada. Involucrada en diversos movimientos sociales: inicialmente en el movimiento de mujeres, después en el movimiento de ecología, el movimiento por la paz y el movimiento anti-globalización. Vandana Shiva es doctora en ciencias físicas (1978) y una de las ecologistas, feministas y filósofas de la ciencia más prestigiosas a escala internacional que luchan activamente contra el modelo neoliberal de globalización y a favor de los derechos de los pueblos. Shiva recibió en 1993 el premio Nobel alternativo de la Paz y es la directora de la Research Foundation for Science, Technology and Natural Resource Policy. En 2010 fue premiada con el Sydney Peace Prize por su compromiso con la justícia social.
MIES, Maria; SHIVA, Vandana. Ecofeminismo: teoría, crítica y perspectivas. Espanha: Icaria editoria, 2016.
- devaneiossérie de vídeos integrantes da disciplina: Fundamentos em Artes-Manuais para Terapias, da Pós-Graduação em Artes-Manuais para Terapias
textos citados
BACHELARD, Gaston. A casa. Do porão ao sótão. O sentido da cabana.
In:_. A poética do espaço. São Paulo: Martins Fontes, 2000.
Acesse aqui o capítulo citadoVEIGA, Ana. Uma escrita e a restante Vida. São Paulo: Hífen, no prelo.
VEIGA, Ana. Minha Ariadne, o instante é eterno - Desejo como produção: Mil anos em cartas entre Ana Schiller e G.. São Paulo: Círculo das Artes, 2017.
Acesse aqui a carta lida. uma biblioteca eclética
as referências fazem parte da pesquisa para a sistematização do conceito de casa.Referências
BRYSON, Bill. Em casa: uma breve história da vida doméstica. São Paulo: Companhia das Letras, 2011.
CERTEAU, Michel de. A invenção do cotidiano: Artes de fazer. Petrópolis, RJ: Vozes, 2009.______. A invenção do cotidiano: Morar, cozinhar. . Petrópolis, RJ: Vozes, 2008.
CHIZIANE, Paulina. Eu, mulher: por uma nova visão do mundo. Belo Horizonte: Nandyala, 2018.DAMATTA, Roberto. A casa e a rua: espaço, cidadania, mulher e morte no Brasil. Rio de Janeiro: Rocco, 1997.
EISLER, Riane. O cálice e a espada: nosso passado, nosso futuro. São Paulo: Palas Athena, 2007.
FEDERICI, Silvia. O ponto zero da revolução: trabalho doméstico, reprodução e luta feminista. São Paulo: Elefante, 2019.
______. Calibã e a bruxa: mulheres, corpo e acumulação primitiva. São Paulo: Elefante, 2017.
LERNER, Gerda. A criação do patriarcado: história da opressão das mulheres pelos homens. São Paulo: Cultrix, 2019.
MATURANA, Humberto; VERDEN-ZOLLER, Gerda. Amar e Brincar: fundamentos esquecidos do humano. São Paulo: Palas Athena, 2004.MORAES, Cátia. Dona de Casa: profissão invisível. Rio de Janeiro: Editora Objetiva, 1997.
PIEDADE, Vilma. Dororidade. São Paulo, Editora Nós, 2017.RISÉRIO, Antônio. Mulher, casa e cidade. São Paulo: Ed. 34, 2015.
SCEGO, Igiaba. Minha casa é onde estou. São Paulo, Editora Nós, 2018.SENNETT, Richard. Construir e habitar: ética para uma cidade aberta. Rio de Janeiro: Record, 2018.
WOOLF, Virginia. Profissões para mulheres e outros artigos feministas. Porto Alegre: L&PM, 2012.
______. Um teto todo seu. Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1985.- conversassérie de conversas em torno da temática da casa
indicações da Vivi Cruz
NA EUROPA A CASA DO HOMEM RUIU
Lina Bo Bardi"A casa do Homem ruiu; na Itália, ao longo da Aurélia e da Emília, na Sicília e na Lombardia, na Provença, na Bretanha; a casa do Homem ruiu na Europa. Não pensávamos que ela fosse desaparecer assim; era muito 'segura', era um 'baluarte', havia alguma coisa mais 'firme' do que a casa? Há anos estava ali, cada ano sofria uma mudança, era a filha que se casava, uma nova geração que vinha, desaparecia a poltrona de veludo com franjas do último Oitocentos e vinha o móvel 'inglês' em mogno e cetim celeste, as lâmpadas de 'opalina' eram substituídas por grandes lampadários de metal dourado; depois, os netos quiseram fazer mudanças, quiseram renovar, segundo aquela nova moda do antigo misturado com o moderno, e o divã Luís Filipe ia muito bem com as lâmpadas modernas de ferro batido laqueadas de branco; também [com] as paredes em cimentite e os dois quadros surrealistas. Certa vez, toda a casa foi transferida para um bairro elegante, para um edifício mais moderno, e foi naquela ocasião que Francisco mandou fazer as grandes cortinas de seda verde amêndoa drapeadas segundo a moda francesa, e os estuques brancos inspirados no barroco; assim, a casa era ligeiramente 'decadente', como disse um arquiteto à la page, mas ia bem, tinha estilo, era muito admirada pelos amigos e uma revista mundana publicou-a. Certo, tinha mudado muito desde os tempos dos avós, cada um lhe havia querido dar o 'seu' toque, mas era sempre a 'nossa casa' e não ousaríamos admitir que pudesse desaparecer assim. Agora, quando relembro nossos zelos em não desmanchar uma prega do drapeado, em não alterar a simetria dos adornos, a nossa preocupação de conservar 'aquele ar' da nossa casa, aquele ar tão 'representativo', parece-me impossível não a rever mais. No ângulo do salão, à esquerda, havia o retrato da vovó; embaixo dele tínhamos mandado fazer um delicado motivo em estuque, quase um brasão, tirado de uma revista; um esculpido que escondia uma delicada luz rósea; era o nosso ângulo preferido, tinha uma vitrola de pele de serpente e um 'bar' arrumado num velho móvel 'Império'. Palavra, nunca imaginei que acabasse assim e, naquela manhã, quando a nossa casa já não existia mais, achei um pedaço de gesso branco raiado, e vi que era uma lasquinha de lâmpada rósea. Mas que estranho, que estranho que nada se visse da nossa casa tão bela, que nada tivesse ficado capaz de distingui-la das outras! Era tudo cinzento, tudo pó, tudo igual aos outros montes cinzentos que também haviam sido casas, mas certamente muito menos bonitas do que a nossa.
Sim, não pensávamos que as casas fossem assim frágeis, assim sutis, assim 'humanas', e que pudessem morrer assim. Foi então, quando esperávamos naqueles momentos de pesadelo, que as casas começassem a ruir que nos apercebemos que elas 'eram humanas', que eram o 'espelho' do homem, que eram 'o homem'. E sentimos também que era culpa nossa se morriam, nós as havíamos erguido para que fossem o espelho do nosso orgulho mais falso, da nossa incompreensão da vida e dos homens, e por culpa nossa ruíam também as pequenas casas sem culpa, as pequenas casas sem luzes róseas e sem drapeados de seda. Foi então, enquanto as bombas demoliam sem piedade a obra e a obra do homem, que compreendemos que a casa deve ser para a 'vida' do homem, deve servir, deve consolar; e não mostrar, numa exibição teatral, as vaidades inúteis do espírito humano; então, compreendemos porque as casas ruíam, e ruíam os estuques, a mise-en-scéne, os cetins, os veludos, as franjas, os brasões; porque, de manhã, tudo era montinhos cinzentos desoladoramente idênticos. Na Itália, as casas ruíram, ao longo das estradas da Itália, nas cidades, as casas ruíram; na França, as casas ruíram, na Inglaterra e na Rússia; na Europa, as casas ruíram. E, pela primeira vez, os homens devem reconstruir as casas, tantas casas no centro das grandes cidades, ao longo das estradas de campo, nos vilarejos; e, pela primeira vez, 'o homem pensa no Homem', reconstrói para o Homem. A guerra destruiu os mitos dos 'monumentos', também na casa, os móveis-monumentos não devem existir mais, também eles, em parte, entram na causa das guerras; os móveis devem 'servir', as cadeiras para sentar, as mesas para comer, as poltronas para ler e repousar, as camas para dormir, e a casa assim não será um lar eterno e terrível, mas uma aliada do homem, ágil e serviçal, e que pode, como o homem, morrer.
Na Europa se reconstrói, e as casas são simples, claras, modestas, pela primeira vez no mundo, talvez o homem haja aprendido, e na manhã seguinte àquelas noites chamejantes, sentido, sobre os escombros da sua casa, que a casa é quem a habita, é 'ele mesmo', e tiveram vergonha da sua velha casa como se tivessem mostrado em público as próprias fraquezas e os próprios vícios."
[in Silvana Rubino e Marina Grinover (orgs.), Lina por escrito. São Paulo: Cosac Naify, 2009. Publicado originalmente em Rio, Rio de Janeiro, n. 92, fev. 1947, pp. 53-55 e 95.]
http://arquiteturaeliteratura.blogspot.com/2011/04/na-europa-casa-do-homem-ruiu.htmlCitações de Claudia Soares
Donati, P. Família no século XXI: abordagem relacional. Tradução: João Carlos Petrini. São paulo: Paulinas, 2008.
ROMAGNOLI, R. C. Os encontros e a relação familiar: uma leitura deleuziana. Arquivos Brasileiros de Psicologia, v. 55,
n. 1, p. 21-30, 2003.Citações de Ana Gomide, PDF aqui.
O fotógrafo [Manoel de Barros]
Difícil fotografar o silêncio.
Entretanto tentei. Eu conto:
Madrugada minha aldeia estava morta
não se ouvia um barulho, ninguém passava entre
as casas.
Eu estava saindo de uma festa.
Eram quase quatro da manhã.
Ia o Silêncio pela rua carregando um bêbado.
Preparei minha máquina.
O silêncio era o carregador?
Estava carregando o bêbado.
Fotografei esse carregador.
Tive outras visões naquela madrugada.
Preparei minha máquina de novo.
Tinha um perfume de jasmim no beiral de um sobrado.
Fotografei o perfume.
Vi uma lesma pregada na existência mais que na pedra.
Fotografei a existência dela.
Vi ainda um azul-perdão no olho de um mendigo.
Fotografei o perdão.
Olhei uma paisagem velha a desabar sobre uma casa.
Fotografei o sobre.
Foi difícil fotografar o sobre.
Por fim eu enxerguei a Nuvem de calça.
Representou para mim que ela andava na aldeia
de braços com Maiakovski — seu criador.
Fotografei a Nuvem de calça e o poeta.
Ninguém outro poeta no mundo faria uma roupa
mais justa para cobrir a sua noiva.
A foto saiu legal.Ensaios fotográficos (2000)
biblioteca dos objetos da casa
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